terça-feira, 21 de abril de 2009

Entrevista com ex-usuário de drogas

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Para quem chega a este ponto, muitas vezes a religião acaba surgindo como a última chance de recuperação. Foi o que aconteceu a Paulo Ramos, hoje um obstinado estudioso do assunto e profissional dedicado à recuperação de dependentes de drogas, trabalho que realiza em duas comunidades terapêuticas: o Espaço Reviver Santa Rita de Cássia e Santa Clara, em Rio Grande da Serra (região da Grande São Paulo), e o Cactus – Centro de Apoio e Recuperação de Dependentes de Droga.
Ramos é também conselheiro da Federação Brasileira das Comunidades Terapêuticas de Campinas; professor do curso Problemas do Homem Contemporâneo 2, na Uni–Santos; e aluno do 4º ano de Psicologia da mesma universidade. Ainda faz palestras sobre prevenção ao uso de drogas por todo o Brasil e até no exterior (já participou de conferências sobre o assunto na Colômbia e no México).
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A entrevista

droga&Família (d&F) – Onde você nasceu e como foi sua infância?
Nasci em Bauru e tive uma infância humilde, mas fui educado com rigor e carinho por minha mãe, já que perdi meu pai aos dois anos de idade. Minha mãe, apesar de analfabeta, sempre demonstrou grande sabedoria e força interior, criando sozinha seus cinco filhos, dentro dos preceitos da religião católica. Logo após a morte de meu pai, mudamos para Santo André, onde moramos por 12 anos e, depois, minhas irmãs casadas foram para o Paraná e o resto da família veio para Santos.

droga&Família (d&F) – Como as drogas entraram em sua vida?
Na escola, o contato com as drogas é fácil. Sempre aparece alguém oferecendo. Mas no começo eu recusava, até que aconteceu um fato que mudou meu modo de pensar e agir.

droga&Família (d&F) – O que foi?
Sempre pensei que meu pai tivesse morrido por causa do alcoolismo e foi um choque descobrir que ele tinha se suicidado. Uma tarde, ao voltar da escola, encontrei por acaso, atrás do sofá, um velho recorte de jornal com a notícia da morte de meu pai. Bêbado, ele não se conformou com a derrota eleitoral de um certo político de Bauru e acabou se envenenando. Saí de casa abalado com aquela história, sem conversar com ninguém, e fui me encontrar com a turma. Acabei aceitando um cigarro de maconha, que foi o início da minha desgraça.

droga&Família (d&F) – Que tipo de drogas você chegou a consumir e por quanto tempo?
Comecei pela maconha, que é a porta de acesso a drogas mais pesadas. Na primeira vez que fumei maconha fiquei alegre, imitando um passarinho, e naquele momento deixei de ser o Paulo para me transformar no Sabiá e, mais tarde, no Frank, o Terrível, e Nick, o Perverso, malandros que se envolviam em brigas e pancadarias. Quando me encontrava sob efeito das drogas, me sentia ousado e atrevido, sem qualquer medo. Virava outra pessoa. Da maconha passei para a cocaína e depois para o crack. Foram quase 10 anos até conseguir sair daquele inferno.

droga&Família (d&F) – Em que ocasiões utilizava as drogas e quando sentiu que o uso estava se tornando compulsivo?
Você fuma, cheira, acha gostoso e, sem perceber, vai se tornando dependente, não passa um dia sem a droga e não pensa em outra coisa. Cheguei a repetir por três vezes o 1º ano Colegial, mas sempre banquei o bom menino dentro de casa, disfarçando muito bem o problema das drogas. Aliás, antes disso eu era um orgulho para a família: trabalhava durante o dia e estudava à noite; adorava jogar futebol e tive até oportunidade de seguir carreira profissional nos juvenis de grandes clubes, como Palmeiras, Portuguesa Santista e Santos. Mas eu mesmo desfiz este sonho ao ser flagrado usando drogas no vestiário de um clube. Depois, fui trabalhar como vendedor e até que me saí bem, ganhei algum dinheiro que acabei perdendo nas drogas.

droga&Família (d&F) – Como passou a ser sua vida (familiar, social e profissional)?
Todo dinheiro que eu ganhava era utilizado na compra de drogas. Até um pequeno apartamento que ainda estava pagando tive de vender para saldar dívidas com traficantes. Nessa época, eu nem disfarçava mais o meu comportamento doentio. Nem percebia o quanto estava fazendo minha mãe sofrer, embora ela pensasse que o meu problema, como o de um irmão que morreu de cirrose aos 36 anos, era o alcoolismo.

droga&Família (d&F) – Sua mãe chegou a falar sobre isso com você?
Acho que teria falado se eu não estivesse tão distanciado da família. Um amigo, porém, me disse um dia que eu estava matando minha mãe e aí eu passei a prestar atenção nela. Num Domingo, faltando alguns dias para o Natal, parei perto da porta da cozinha e vi um coração de madeira que eu havia feito na escola, há muito tempo, e dado a ela como presente no "Dia das Mães". Estava cheio de pregos. Achei esquisito e perguntei o que significava aquilo. Então eu a vi mexendo em uma panela no fogão e as lágrimas caindo sobre a comida. Respondeu que aqueles pregos representavam o sofrimento que eu estava causando a ela e que só seriam retirados no dia em que eu mudasse de vida.

droga&Família (d&F) – Isso o motivou a abandonar as drogas?
Sim. Naquele momento, pedi perdão a ela e, pela primeira vez, tomei a resolução de parar de me drogar. Poucos dias depois, soube da prisão de dois traficantes a quem eu estava devendo muito dinheiro e isto foi mais um impulso na minha decisão.

droga&Família (d&F) – Como foi essa mudança?
Não estava muito decidido no começo. Resolvi esperar o carnaval passar para depois começar um tratamento. Tive sorte de encontrar um médico amigo da família, que morava em Curitiba, e me ofereceu ajuda. Fui para lá na Quarta-feira de Cinzas e passei quatro meses internado na clínica, tomando remédios e fazendo todo tipo de trabalho doméstico (na horta, no jardim, na limpeza da casa, na cozinha). Um dia, o médico me mandou voltar para casa, achando que eu já podia andar com minhas próprias pernas, mas eu tinha medo de voltar a me drogar, não queria ir embora. Então ele me perguntou: "Você acredita em Deus?" Respondi: "Não. Não acredito em quem não vejo." E ele insistiu: "Você vai ter que encontrar Jesus para poder sobreviver."

droga&Família (d&F) – E o que você acabou fazendo? Voltou a usar drogas?
Tive de reunir todas as minhas forças para não retroceder. Parece que Deus te coloca em situações críticas só para testar a tua determinação. No dia em que voltei a Santos, as primeiras pessoas que encontrei foram as da velha turma de boteco e jogo de sinuca. Um dos "amigos" me chamou pelo apelido e me ofereceu cocaína. Comecei a tremer. Aquele pacote estendido para mim... Então eu disse: "O Sabiá morreu, só sobrou o Paulo." E me afastei. Nesse mesmo dia, passei numa agência de um banco e pedi um emprego ao gerente. Não havia vagas naquele momento, mas eu insisti; disse que faria qualquer coisa (cozinhar, lavar e passar roupa) e contei a minha história. Acabei conseguindo uma vaga de escriturário e em cinco meses fui promovido a chefe do setor de cobrança e logo depois tive outra promoção.

droga&Família (d&F) – Em que momento você começou a acreditar em Deus?
Fui levado ao encontro da fé meio por acaso. Uma antiga namorada me convidou para participar de um encontro de jovens católicos na comunidade São Judas Tadeu, em Santos, e lá fui recebido com muito carinho. No meio da reunião, apareceu um cara com quem eu já tinha brigado duas vezes. Impulsivamente, me levantei para bater nele, mas a Sônia me segurou e ele acabou vindo sentar ao meu lado. Coincidentemente, alguém começou a falar sobre amizade e depois pediu que déssemos as mãos para rezar o Pai Nosso. Ele então pegou na minha mão e nós dois começamos a chorar.

droga&Família (d&F) – Então, vocês se reconciliaram?
Não naquele momento. Era fim de ano, e os organizadores do encontro pegaram o nome de todos os presentes para sortear um "amigo secreto". E o nome dele saiu justamente para mim. Resolvi dar a ele dois livros religiosos: "Os Frutos do Espírito Santo", do Padre Haroldo, e "Por Causa de um Certo Reino", do Padre Zezinho. Agora, acredite se quiser: eu era o amigo secreto dele e ganhei os mesmos livros. Depois disso, nos tornamos amigos de verdade.

droga&Família (d&F) Você acredita que sua atuação na Igreja o afastou definitivamente das drogas?
Sem dúvida. E tive uma experiência que considero definitiva na minha conversão ao cristianismo. Foi durante um retiro espiritual em que assisti a uma palestra feita por uma médica, chamada "Plano de Deus em sua Vida". Ela dizia que nossa missão neste mundo era ser feliz, mas suas palavras não eram suficientes para mim. Passei a noite inquieto e não quis acompanhar o grupo em meditação na capela. Durante a madrugada, choveu forte e eu senti vontade de ir à capela. Lá dentro, sozinho, implorei a Deus que me ajudasse a encontrar o caminho da paz e, olhando para uma cruz sem imagem, tive a visão de duas mãos me chamando. Saí de lá com a certeza de que deveria servir a Deus e fui falar com o Padre. "Entre quatro paredes, é fácil decidir, mas vá lá fora antes e veja se é isso mesmo que você quer", ele me aconselhou. Então pensei em quanta coisa eu poderia fazer pelos velhos, prostitutas, injustiçados, pobres, sem teto, drogados... e comecei a trabalhar com jovens dependentes em várias comunidades, fazendo palestras em clínicas, igrejas e até nas ruas.

droga&Família (d&F) – O trabalho de prevenção contra as drogas foi tomando conta de sua vida...
Praticamente, abandonei a carreira bancária para me dedicar à recuperação de dependentes e hoje vivo disso. Acabei me casando com outra Sônia, que conheci nesse meio. Ela não chegou a ser dependente, mas experimentou cocaína algumas vezes. E a pior conseqüência do uso de drogas nós sentimos na própria carne. Em outubro de 1982, nasceu nossa primeira filha, Carolina, um anjo que não chegou a ver o mundo. Morreu em seguida, vítima de teratogenia, patologia causada por resíduos das drogas que ficam no corpo dos usuários. Felizmente, anos depois nasceram com muita saúde Felipe e Lucas.

droga&Família (d&F) – Como surgiram as comunidades "Cactus" e "Reviver"?
O trabalho com jovens foi crescendo tanto que eu e a Sônia achamos melhor estruturá-lo em uma comunidade. Assim, em 1988 surgiu a Cactus, aqui em Santos, junto à paróquia da igreja Nossa Senhora Aparecida. O nome é uma referência à planta cactus que é a única fonte de vida que o homem encontra no deserto. O trabalho é baseado nos 12 pontos de recuperação dos alcoólicos anônimos. Contamos com uma casa, em que os jovens começam a se livrar da dependência das drogas, e uma fazenda de onde saem recuperados para a vida.

droga&Família (d&F) – E como funciona o Espaço Reviver?
Este foi fundado em 1995 e funciona como um semi-internato, com nova filosofia e métodos inéditos de tratamento. Fica em Riacho Grande, região da Grande São Paulo, e é composto pelas comunidades terapêuticas Santa Rita de Cássia (masculina) e Santa Clara (feminina). O atendimento no Reviver atinge diretamente as famílias, que ficam na comunidade de sexta a domingo, quando vêm visitar seus filhos. Nesse período, os pais assistem a palestras e fazem os mesmos trabalhos dos filhos, participam de atividades esportivas e também passam a ter responsabilidade por palestras e encontros de espiritualidade. Além disso, as comunidades mantêm um grupo de prevenção a recaídas, que faz reuniões a cada dois meses com os jovens que terminaram o tratamento. Para sustentar essas comunidades, cobro mensalidades de acordo com a possibilidade financeira de cada um, faço palestras por todo o Brasil, ministro cursos de prevenção para professores, psicólogos e outros profissionais e dou aulas de PHC (Problemas do Homem Contemporâneo) na faculdade de Psicologia da Uni-Santos, onde estou estudando.

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